quarta-feira, 29 de abril de 2009

vende-se






é a minha estreia como blogger armado ao corrector imobiliário, neste caso em causa própria, que é como quem diz, casa própria, que a partir desta semana está à venda a quem a prometa acarinhar, estimar, a quem não lhe plante marquises de alumínio, vá.
Em caso de interesse numa visita à lauta propriedade, t1 solarengo com terraço e distância de 5 minutos até à avenida da liberdade, não hesitem em enviar-me um email para irmaolucia [arroba] gmail.com ou para casaruadopassadico [arroba] gmail.com. Também podem ligar-me para o telemóvel 919187320, tenho uma voz graciosa e disponível e não, nunca trabalhei numa daquelas linhas de valor acrescentado, o que é pena. Alea jacta est, os dados estão lançados, como dizia certo e determinado personagem de certa e determinada banda desenhada com um gordo que tinha caído num caldeirão, quando pequeno. E não, não estou a referir-me aos meus noventa e qualquer coisa quilos.

o terraço



E haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo
E onde quer que estejamos será sempre um terraço
a meia altura
com os ao longe por muito tempo estudados
perfis do monte mário ou de qualquer outro monte
o melhor sítio para saber qualquer coisa da vida
*


uma casa a céu aberto, ou pelo menos parte dela. se no inverno gozamos a vista do salpicar da chuva entre plantas e ladrilhos, no verão temos a nossa própria côte d'azur mas com muito menos pedantes. e que dizer dos dias primaveris, em que se preparam as primeiras refeições com o céu por cima e o estranho silêncio de um centro da cidade muito pouco habitado, até se ouvem os pássaros, valha-me deus, no dia em que bichos desembestados perseguidos pelo will smith assomarem a esta Lisboa será mesmo altura de irmos embora. ainda não é o caso, por agora goza-se o privilégio de pequenalmoçar fora em dias de fim-de-semana, apreciando o sol, com o jornal em riste e os bigodes de leite e o cheiro a café sacado ali ao lado, na cozinha. vá para fora cá dentro, dizia o outro. eu eu não consigo discordar.






* Belo, Ruy in Aquele grande Rio Eufrates, editorial Presença



o + 1 do T1 + 1

Arranjei o covil e parece que me saí bem. Do exterior vê-se apenas um grande buraco, mas na realidade esse buraco não conduz a parte nenhuma. Alguns passos andados, esbarra-se com um enorme bloco de pedra que a Natureza ali colocou. *

diz o povo que tudo o que é pequeno tem graça menos o pão e o dinheiro, esqueceu-se, o povo, de juntar outros elementos, há gente para quem o tamanho conta, não apenas o desempenho, a disponibilidade, as possibilidades de arrumação, que é o que acontece com estas casas planeadas de forma a termos uma escapatória para os tesouros (vulgo tralha) que queremos manter afastados dos olhos e das joelhadas inoportunas. Esta casa que vos fala tem um desses espaços prodigiosos, alcunhado entre amigos como o quarto do kafka, onde pode viver perfeitamente uma terceira pessoa, sobretudo se estivermos a falar de uma criança, criada num ambiente sem janelas e enfiada numa gaveta de griffe ikea. É possível, dizem os mal-intencionados que tal criança sofresse de graves psicoses em crescendo neste ambiente ao longo dos anos mas assim como assim a nossa terra está cheia de gente desaparafusada que cresceu em beliches ou mesmo em quartos só para si. Nada é garantido, portanto, a não ser uma área franca que dá muito, muito jeito. Mais. Devidamente blindado e apelidado de anexo este é um espaço de fazer inveja a qualquer austríaco que se preze. É só querer.





* in Kafka, Franz, O Covil, ed. Europa-América, tradução de João Gaspar Simões

o quarto



Depois de observar a movimentação do helicóptero por alguns minutos, Militão voltou para a cama, e só então viu a moça nua, dormindo, com a cabeça em baixo do travesseiro. Não se lembrava do nome dela. Agora era assim. Geralmente despachava as moças, logo depois do sexo. Quando neguinha começava o nhenhenhém, vou logo dizendo, até logo, minha filha. É foder e ir embora, dizia para os amigos. Era a maneira que encontrara para se vingar da ex-namorada, cujo nome evitava repetir. Referia-se a ela como "a falecida". *

e depois há histórias menos garridas, mais amor, menos automutilação, mais calhandrice, menos saraivada de balas morro abaixo, tudo a partir do quarto, justa ou injustamente conotado com entrega, actividades lúdicas, repouso, ronha e vice-versa ou então nada disto, o feliz proprietário decide o que fazer da divisão. a propósito, na zona fronteira a este quarto deambulam pessoas nos seus afazeres, paraíso do habitante-exibicionista e do passeante-voyeur. ou então não, a discrição oferecida por umas sólidas portadas de madeira é imbatível.





* in Melo, Patrícia, Inferno, ed. Campo das Letras



a sala

– Tem umas instalações originais - observou, dirigindo-se a Colin enquanto esfregava vigorosamente as costas.
– Queira desculpar, disse Colin.
– Além disso - acrescentou o professor - esta sala esférica tem qualquer coisa que deprime. Experimente tocar o Slap Happy, talvez consiga que ela volte à primeira forma. Ou então aplaine-a. *



uma preocupação evitada no imóvel que aqui se anuncia, todo ele esquinas, esferas nada, ângulos rectos, requebros, mies van der rohe dos pequeninos à rua do passadiço, prova disso são as fotos que se seguem, da sala multidisciplinar e user friendly, e desculpe-se a ausência de lareira, do mítico bar de canto, ex-libris dos oitentas, do som surround e seus subwoofers que escavacam a dignidade de um bairro a dar para o oitocentista. é apreciar, então, a restante programação segue dentro de momentos.






* in Vian, Boris, A espuma dos Dias, ed. Frenesi

a cozinha



Todos os pratos voltaram para a cozinha vazios. A única nota destoante do jantar foram os vinhos do Paulo. Paulo trabalhava para Pedro, que estava quebrado. Segundo Samuel, a regra numa situação assim é os vinhos dos empregados piorarem à medida que os do patrão melhoram, pois o patrão passa a gastar mais em supérfluos, para se consolar, do que com a empresa falida e seus empregados. *

repare-se na pertinência do post, gente em crise, empresários falidos, lay-offs entre duas garfadas, vinho. por esta cozinha já passou algum, de variadas estirpes, uns de bordéus acamados numa mala de viagem, outros da herdade da comporta, néctar que não envergonha, que até é alma das festas e não custa mais do que uma gorjeta no gambrinus, estabelecimento que tanta falta faz ao pulido valente no 1º de maio, a desfaçatez desta gente, que até cerra portas no dia do "putativo" trabalhador. e também há os vinhos do minipreço, aqui tão perto, o de santa marta, promessa de benção e de prateleiras compostas, está provado que até o titubeante alandra que lá se vende por menos de dois euros não envergonha as papilas neo-realistas que todos temos quando olhamos para o saldo bancário, tem dias. aqui já se cozinharam iguarias de toda a maneira e feitio e paladar, graças ao contributo de vários estabelecimentos, o minipreço não tem o exclusivo, ali ao campo mártires da pátria há um pingo doce, embora a gente se tenha habituado ao das picoas, são gostos, sem contar com as bizarrias trazidas do supermercado chinês na rua da madalena, e asseguro-vos, os produtos do super cantonês são das coisas menos estranhas que se encontram por aquelas bandas ao sábado de manhã. vale bem a pena o passeio a pé.





* in Veríssimo, Luis Fernando, O Clube dos Anjos, ed. Dom Quixote